domingo, 17 de abril de 2011

Convertido à religião, Pascal se dedica a filosofia

Depois de participar de grupos dados à "libertinagem" e aos jogos de azar, o gênio Pascal experimentou uma revolução em sua vida. Em 1654, escapou da morte em um acidente de carruagem numa das pontes de Paris. Logo depois, em um êxtase espiritual, decidiu dedicar-se com fervor à militância religiosa e depois à contemplação e à oração. Após a conversão, documentada de forma comovente em Memorial, Pascal faz grandes progressos na vida espiritual como se pode ver também pela Oração para pedir a Deus a graça de fazer bom uso das enfermidades, escrito edificante e perene. "À conversão segue-se o reatamento de relações, cada vez mais freqüentes e intensas com Port-Royal, que por esta época, tinha recebido dentro de seus muros um pequeno grupo de leigos, desejosos de uma vida de penitência e de santificação." (Mondin, 1981)

Pascal converteu-se, naquela época, ao jansenismo, uma corrente religiosa nascida no catolicismo. "O movimento teve início com o bispo holandês Cornélio Jansênio (1585-1638), que protestava contra o racionalismo supostamente exagerado da teologia escolástica." (Falceta, 1998d).

"Em 1656 foi chamado a Port-Royal em auxílio de Arnauld (6), ameaçado de excomunhão por causa de suas posições jansenistas, e para defender o jansenismo dos ataques dos jesuítas (7). Pascal atendeu ao convite e escreveu as Cartas Provinciais, que fez circular anônimas, nas quais, com dialética habilíssima e com ironia ora sutil, ora dura, abordava os aspectos discutíveis da Companhia de Jesus.

Mais tarde veio-lhe a idéia de escrever uma Apologia da Religião Cristã, projeto que não pôde realizar em virtude de sua morte prematura. Os fragmentos desta obra foram reunidos no volume intitulado Pensées (Pensamentos). "Para uns é um livro de fé; para outros, um livro em que uma alma humana se revela com maior naturalidade e verdade do que alhures; para todos uma obra prima sem igual na língua francesa".(Granges,1966) (8).

Blaise Pascal foi exceção em sua época. Enquanto a maioria dos filósofos viviam quase exclusivamente de herança de Descartes, o autor que defendia o racionalismo e a especulação lógica, fria, clara e precisa aplicados a toda e qualquer forma de ciência, seja ela exata ou humana, Pascal moveu, então, uma guerra encarniçada contra esses conceitos. (9)

Dos Pensamentos, quatro são críticas claras à Descartes, os de número 76 a 79.

76-Escrever contra os que aprofundam demais as ciências. Descartes. (Pascal, 1966). Neste pensamento, propõe-se escrever futuramente contra Descartes, por causa da importância excessiva dada por este à ciência.

77-Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pode evitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus. (Pascal, 1966). No pensamento 77, declara não poder perdoar a Descartes por ter dado pouco espaço a Deus em sua filosofia. (10)

78-Descartes: inútil e incerto. (Pascal, 1966).

79 - Descartes - Cumpre dizer, grosso modo: Isso se faz por figura e movimento, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina é ridículo, pois é inútil e incerto, e penoso. E ainda que fosse verdadeiro, não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de trabalho. (Pascal, 1966). Finalmente, no pensamento 79 sustenta que não vale a pena perder tempo com a filosofia de Descartes.

Em muitos outros pensamentos Pascal critica Descartes, sem citá-lo. A sua crítica é dirigida especialmente contra o método geométrico cartesiano e contra a mentalidade geométrica do seu autor, que pretende reduzir tudo a idéias claras e distintas. Segundo Pascal, o método geométrico é válido para as ciências exatas, não para as humanas - filosofia, moral, religião - nas quais, em vez de idéias claras e distintas, prevalecem idéias complexas, mas carregadas de verdades. Pascal não condena totalmente o método geométrico; rejeita apenas a pretensão de aplicá-lo a qualquer verdade, em especial às da esfera religiosa. Segundo ele, o método geométrico não tem valor absoluto nem mesmo no reino da ciência, já que os primeiros princípios dela não são claros e distintos, mas confusos e obscuros; eles são aprendidos mais pelo coração do que pela razão. (11) Em conclusão, o erro de Descartes consiste em ter exagerado o fator intelectivo (negligenciando completamente o fator afetivo) e a importância da razão e da especulação (subestimando a contribuição do coração).


1. O presente paper é um dos textos básicos dos Seminários "Ciência, Filosofia & Metodologia" que a cadeira de Metodologia Científica da FZEA-USP promove no campus de Pirassununga.

2. Em 1644, Torricelli havia efetuado sua célebre experiência de tubo com mercúrio. Schurmann, Paul F. Historia de La Física, 1946.

3. Os antigos acreditavam que a natureza teria "horror ao vácuo". Qualquer situação em que surgisse o vácuo seria um estado de desequilíbrio, e a natureza imediatamente alteraria o sistema, de forma a acabar com o vácuo. Segundo essa visão que até hoje subsiste no senso comum, o vácuo teria a capacidade de "puxar" os objetos. Chiqueto, M. J.; Valentim, B.; Pagliari, E. Aprendendo Física 1. 1996.

4. Este era um resultado razoável pois, quanto maior for altitude do local, mas rarefeito será o ar e menor será a espessura da atmosfera que está atuando na superfície do mercúrio. In: Máximo, A.; Alvarenga, B. Curso de Física. 1997.

5. O próprio triângulo tinha mais de 600 anos, mas Pascal descobriu algumas propriedades novas. Boyer, C. B. História da Matemática.1974.

6. Trata-se do jornalista Arnauld que foi condenado por sua obra. Pascal entra na polêmica instituída em defesa do jornalista e publica a Primeira Provincial.

7. Pascal considerava o jesuitismo um "simplificador" da religião, responsável pela substituição da angústia metafísica pela observância automática dos ritos.

8. Essa passagem é citada por Ch. M. des Granges na introdução de Pensamentos, traduzido por Sérgio Milliet e publicado em 1966. "...talvez parte da sugestão e do encanto das Pensées resida precisamente em sua fragmentariedade: em ser rajadas luminosíssimas ou ainda um grande feixe de luz intensa. São fragmentos de alma, estandartes de vida intensamente espiritual e religiosa, quase como parte de um longo e apaixonado rosário. As Pensées sempre me trouxeram a imagem de uma grande alma solitária e ardentemente mística, absorta em uma longa e silenciosa oração que quando alcança o cume da elevação e de amor, rompe o silêncio e se expressa com acentos lapidares, inconfundíveis, para recolher-se depois no êxtase inefável. (Sciacca, 1955, p.158)

9. Pascal disse: Quando comecei o estudo do homem, vi que estas ciências abstratas não são próprias do homem e que eu me encontrava mais fora de minha condição ao penetrá-las que os outros a ignorá-las. Perdoei esta ignorância, mas acreditei ter encontrado ao menos muitos companheiros no estudo do homem, que o no estudo verdadeiramente adequado. Me enganei; existe menos gente que se interesse disto que de geometria. E Sciacca (1955) comenta: "Sem dúvida, o estudo do homem não exclui o da geometria, nem este é antitético do primeiro. Pascal não gosta da geometria que no seu estudo se desinteressa do homem... Para falar com franqueza sobre a geometria, a considero o exercício mais nobre da mente; mas ao mesmo tempo a reconheço tão inútil que vejo pouca diferença entre um homem que se dedique a geometria e um hábil artesão. O está em evidência porque confirma a convicção de Pascal de manter-se longe da pura geometria, de criticar o "geometrismo" como modelo de puro racionalismo; e por outro lado, de manter-se fiel a "geometria cristã", que nos números, e nas dimensões, no tempo e no espaço vê uma perspectiva da natureza, um reflexo da vida do homem e por isto uma mensagem da verdade cristã, cantada, em silêncio, pelo coração."

10. O ateísmo é a loucura da razão elevada a norma de vida, a lei do bem e da verdade: é a loucura do pecado que presume negar a loucura da Cruz. Mas no erro não existe paz: a alma não se aquieta. Quanto mais se esforça o homem em atrair tudo para si mesmo, mais se perde e mais se estranha." Algo semelhante disse S. Agostinho nas Confissões (1,1,1): ...nos fizestes para Vós e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em Vós.

11. "A razão está dominada pela imaginação, mestra de erros e falsidades, e que nos engana precisamente porque o seu engano não é sempre o mesmo. Ela possui o grande dom de persuadir os homens. Por outra parte, a razão tem uma voz agradável, mas é incapaz de dar um preço as coisas. A imaginação não pode fazer sábio aos néscios, mas os faz felizes; ao contrário da razão, que não pode fazer mais que desgraçados aos seus amigos; por um lado os cobre de glória, outras de vergonha."(Sciacca, 1955, p.174)

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